sexta-feira, 13 de julho de 2018




Shirlei Noveletto - Administradora de empresa
Emoção... suspense e realismo.

A PAZ QUE EU MEREÇO

Sinto-me fraco, a respiração pesada e a dor no peito não me deixam pegar no sono... Sinto minha pele perdendo o brilho, a visão turva e a garganta seca... Não me alimento há dias, mas não sinto fome... Não durmo há semanas, mas tenho pesadelos... Não me levanto dessa cama há meses, mas não sinto falta de andar nas ruas... Escuto com dificuldade as crianças brincando do lado de fora, ás vezes elas brigam, mas quase sempre as janelas estão fechadas... Uma vez por semana recebo visita, o rosto familiar, é sempre o mesmo menino que troca meu cilindro de oxigênio e despede-se me olhando com compaixão... confesso que nos últimos anos, ele é o único rosto que tenho visto. 

Não me lembro ao certo quando adoeci, o tempo passa diferente para quem tem os dias contados, é um calendário paralelo, estranho e perturbador... não tem horário de almoço, nem fim de tarde, dia de passeio... Um dia desses consegui dormir, gostaria de dizer que sonhei coisas bonitas, mas eu apenas adormeci... fui despertando com uma conversa ao fundo, parecia distante, mas vinha da sala de minha casa. Era Dona Filomena, Filó para os íntimos, uma vizinha muito prestativa, que limpa minha casa toda semana, mas nunca aparece no meu quarto para me ver... ela conversava com outra pessoa, não consegui reconhecer a segunda voz, realmente não sei quem era, comentavam sobre minha família nunca ter aparecido, e nem meus amigos, falavam também em chamar o padre, para que eu confessasse meus erros e me despedisse da vida. 

Achei aquilo engraçado... e até sorri... Talvez Dona Filó via em meu velório um acontecimento social, no qual poderia, enfim, usar seu vestido preto, contar detalhes dos meus últimos momentos às amigas, fingir chorar, ser consolada pela perda... como eu gostaria de dar-lhe essa alegria, mas eu não estava no controle... nunca estive, essa escolha não era minha. Também achava graça, quando ela tentava justificar meu sofrimento, dizendo que em algum momento eu deveria ter cometido um grande erro, e que tudo o que me acontecera eram conseqüências dos maus passos e sacrilégios por mim cometidos... Fui um bom filho, ia à Igreja de vez em quando, não me lembro de ter faltas graves e por isso não via minha doença como um castigo... mas o que isso importa??? Era o fim de qualquer forma, por castigo, por ironia do destino, por falta de cuidado... não importa, era o fim. Aos poucos meus braços não conseguiram mais alcançar os remédios na cabeceira da cama... Continuei sem comer, sem levantar-me, via cada vez menos o menino do oxigênio, o barulho das crianças ficou cada vez mais raro e a voz de Filó nunca mais ouvi... mas consegui adormecer... profundamente...

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