quinta-feira, 2 de agosto de 2018

POR: - Shirlei Aparecida Noveletto


ÉRAMOS TRÊS


Quando recordo de minha infância, lembro-me das tardes frias de inverno em que eu o John fazíamos bonecos na neve... das manhãs de outono em que as folhas secas cobriam o asfalto cinza da rua... das noites da primavera florida em que eu e Sofia colhíamos as flores do jardim e enfeitávamos a mesa de jantar... John era meu melhor amigo... o melhor amigo que alguém poderia ter... Sofia era minha irmã... a melhor irmã que alguém poderia ter... John, tinha dificuldade em andar... arrastava uma das pernas, seqüela de uma doença grave que teve dias depois de nascer... essa mesma doença, afetou-lhe a visão, aprisionando-o aos óculos de lentes grossas... Sofia parecia flutuar quando andava, tinha a leveza do vento, parecia uma princesa de um conto de fadas... seus olhos eram verdes. John me ensinou a andar de bicicleta e me ajudou com as tarefas de matemática... Sofia ensinou-me a dançar, e me ajudou a combinar as roupas com os sapatos... John e Sofia tinham 16 anos, estudavam na mesma classe, em uma escola a poucos quilômetros de casa, eram vizinhos de porta... mas tirando isso... não tinham mais nada em comum. Sofia era líder de torcida, ovacionada em cada performance que fazia... John se vestia de mascote, suando de baixo da fantasia grossa... foi o mais perto que ele conseguiu chegar do time de futebol... Sofia tinha um milhão de amigos... John tinha a mim... Sofia freqüentava muitas festas, John nunca era convidado para nenhum evento, em compensação, John recebeu o primeiro pedaço de bolo de todos os meus aniversários. 


Eu era mais nova que John e Sofia... e ambos me amavam e cuidavam de mim como uma jóia preciosa, lembro-me bem de quando tive catapora, Sofia ficou comigo o tempo todo! Me deu remédios, mediu minha febre... e John, lia pra mim inúmeras histórias, para que a imaginação me libertasse daquele quarto. Sofia me amava porque eu era sua irmã... John me amava porque eu era dele a única companhia... Todas as manhãs eu acordava apressada para despedir-me de Sofia que entrava no ônibus escolar com seus passos de rainha... John saía logo em seguida, acenava e mandava-me um beijo de longe, mas fazia o caminho a pé, embora estudassem na mesma escola e freqüentassem a mesma classe, John deixou de utilizar o transporte escolar, não aguentou as chacotas que faziam sobre sua paralisia, por vezes ele foi agredido verbal e fisicamente pelos outros alunos... Sofia seguia no ônibus amarelo, fofocando com suas amigas... John seguia a pé, chutando as pedrinhas do caminho... Um ano antes, em meados de Maio, aproximava-se o aniversário de quinze anos de Sofia, meus pais fizeram pra ela uma grande festa, todos os seus amigos estavam lá, vovô com seu cachimbo fedorento e vovó com o seu coque grisalho chegaram uma semana antes da festa, foram muitos os preparativos, música, roupas, convites, bolo, doces, salgados, o ponche de maçã não podia faltar... era o preferido de Sofia... O grande dia chegou, 17 de Maio... Sofia estava ainda mais linda, com um vestido rosa, uma coroa de flores lhe enfeitava os cabelos... minha irmã era realmente linda! Em poucos instantes nossa casa estava cheia... cheia de amigos, familiares, cheia de alegria e comemoração... John não estava lá... A certa altura, depois de ter roubado alguns doces antes da hora... resolvi deixar a festa por um instante, pois a música alta começava a incomodar meus ouvidos de criança... ao chegar a rua, notei John, sentado na calçada a frente de minha casa, sozinho e de cabeça baixa... voltei pra festa apenas para roubar mais uns doces, mas dessa vez eles eram para o John... comemos os doces, e só não fiquei ali o resto da noite, porque mamãe sentiu minha falta e me colocou pra dormir... 

Aquela noite foi a mais especial da vida de Sofia, ela dançara valsa com meu pai, recebeu muitos presente e felicitações, trocou de roupa três vezes e cada aparição sua surpreendia os convidados com sua beleza majestosa. Aquela noite foi a mais importante pra mim também, sentada na calçada, John me ensinou onde eu deveria cavar para achar as melhores minhocas pra nossa pescaria, me ensinou alguma coisa sobre a via Láctea e mostrou-me e deu nome a algumas estrelas que enfeitavam o céu naquela noite... Quando deitei-me na cama, lembro de ter agradecido ao “papai do céu” pela vida de Sofia, minha irmã querida que me ensinou tudo sobre maquiagem e meninos... e pela vida do meu amigo John que me ensinou a amarrar os sapatos e me explicou que sapos não tem dentes e eu não precisava temê-los. No ano seguinte a vida corria normalmente, Sofia com 16 anos, era castigada frequentemente por meu pai, devido aos inúmeros pretendentes que ela tinha e a conta enorme de telefone que chegava todo final de mês. Sofia era tão linda... John com 16 anos, era castigado diariamente pelas inúmeras espinhas que lhe cobriam o rosto, e pelos incontáveis apelidos à ele atribuídos. John era tão lindo...
Era final de Junho de 1986, eu estava eufórica... era o último dia do ano letivo, e eu teria Sofia só pra mim, para ensinar-me novos passos de balett; eu teria John só pra mim, e enfim construiríamos a nossa pipa cor de rosa... Como de costume, levantei cedo e despedi-me de Sofia, e como sempre ela adentrou o ônibus amarelo com toda sua realeza... John estava atrasado, aguardei alguns instantes na janela, e enfim ele apareceu, acenou, mandou-me o beijo costumeiro e pude ler em seus lábios a frase mais profunda já proferida pelo ser humano: “eu te amo”... fiz um coração com as mãos em retribuição... Corri para meu quarto, puxei meu cobertor de estimação, desci lentamente as escadas e deitei-me no sofá, mudando constantemente de canal para achar meu desenho animado preferido, na ânsia que a manhã acabasse logo e que as férias nos dessem boas vindas... eram 7:45 e eu olhava desesperada para o relógio, como se meus olhares pudessem adianta-lo e assim chegar mais rápido as 12h, a hora mais esperado do dia, quando minha Sofia e meu John voltariam pra casa... 

Peguei no sono... fui acordada com o barulho do telefone, olhei rapidamente o relógio... ainda eram 10h, ajeitei-me novamente no sofá, mas de lá fui brutalmente tirada pelo grito desesperado de minha mãe... Algo de errado tinha acontecido... foi na escola... foi com Sofia... Haviam invadido a escola, vários tiros foram ouvidos... Sofia estava morta... John era o assassino! Foi duro ajudar minha mãe a escolher a roupa para o funeral de Sofia... foi duro olhar para o outro lado da rua e ver a casa de John vazia... A última vez que vi Sofia, foi quando saía de casa para a escola, seus cabelos estavam soltos e ela usava o uniforme azul, a última vez que vi John, foi no seu julgamento, seus cabelos estavam raspados, ele usava uniforme laranja e pude ver, por debaixo das lentes grossas, que as lágrimas lavavam seu rosto. Sofia agora repousa num verde gramado, num lugar calmo, com uma foto linda esculpida na lápide de mármore... John foi condenado a morte, e aguarda inquieto o dia em que uma injeção lhe adentrará as veias e o levará daquele corredor escuro. Amarei Sofia eternamente por tudo o que ela fez por mim... e a odiarei pelo resto de meus dias pelo que ela fez com John... Amarei John pelo resto de meus dias por tudo o que ele fez por mim... e o odiarei eternamente pelo que fez com Sofia...

Nenhum comentário:

Postar um comentário