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POR: - Shirlei Aparecida Noveletto |
ÉRAMOS TRÊS
Quando recordo de minha infância, lembro-me das tardes
frias de inverno em que eu o John fazíamos bonecos na neve... das manhãs de
outono em que as folhas secas cobriam o asfalto cinza da rua... das noites da
primavera florida em que eu e Sofia colhíamos as flores do jardim e
enfeitávamos a mesa de jantar... John era meu melhor amigo... o melhor amigo
que alguém poderia ter... Sofia era minha irmã... a melhor irmã que alguém
poderia ter... John, tinha dificuldade em andar... arrastava uma das pernas,
seqüela de uma doença grave que teve dias depois de nascer... essa mesma
doença, afetou-lhe a visão, aprisionando-o aos óculos de lentes grossas...
Sofia parecia flutuar quando andava, tinha a leveza do vento, parecia uma
princesa de um conto de fadas... seus olhos eram verdes. John me ensinou a
andar de bicicleta e me ajudou com as tarefas de matemática... Sofia ensinou-me
a dançar, e me ajudou a combinar as roupas com os sapatos... John e Sofia
tinham 16 anos, estudavam na mesma classe, em uma escola a poucos quilômetros
de casa, eram vizinhos de porta... mas tirando isso... não tinham mais nada em
comum. Sofia era líder de torcida, ovacionada em cada performance que fazia...
John se vestia de mascote, suando de baixo da fantasia grossa... foi o mais
perto que ele conseguiu chegar do time de futebol... Sofia tinha um milhão de
amigos... John tinha a mim... Sofia freqüentava muitas festas, John nunca era
convidado para nenhum evento, em compensação, John recebeu o primeiro pedaço de
bolo de todos os meus aniversários.
Eu era mais nova que John e Sofia... e
ambos me amavam e cuidavam de mim como uma jóia preciosa, lembro-me bem de
quando tive catapora, Sofia ficou comigo o tempo todo! Me deu remédios, mediu
minha febre... e John, lia pra mim inúmeras histórias, para que a imaginação me
libertasse daquele quarto. Sofia me amava porque eu era sua irmã... John me
amava porque eu era dele a única companhia... Todas as manhãs eu acordava
apressada para despedir-me de Sofia que entrava no ônibus escolar com seus
passos de rainha... John saía logo em seguida, acenava e mandava-me um beijo de
longe, mas fazia o caminho a pé, embora estudassem na mesma escola e
freqüentassem a mesma classe, John deixou de utilizar o transporte escolar, não
aguentou as chacotas que faziam sobre sua paralisia, por vezes ele foi agredido
verbal e fisicamente pelos outros alunos... Sofia seguia no ônibus amarelo,
fofocando com suas amigas... John seguia a pé, chutando as pedrinhas do
caminho... Um ano antes, em meados de Maio, aproximava-se o aniversário de
quinze anos de Sofia, meus pais fizeram pra ela uma grande festa, todos os seus
amigos estavam lá, vovô com seu cachimbo fedorento e vovó com o seu coque
grisalho chegaram uma semana antes da festa, foram muitos os preparativos,
música, roupas, convites, bolo, doces, salgados, o ponche de maçã não podia
faltar... era o preferido de Sofia... O grande dia chegou, 17 de Maio... Sofia
estava ainda mais linda, com um vestido rosa, uma coroa de flores lhe enfeitava
os cabelos... minha irmã era realmente linda! Em poucos instantes nossa casa
estava cheia... cheia de amigos, familiares, cheia de alegria e comemoração...
John não estava lá... A certa altura, depois de ter roubado alguns doces antes
da hora... resolvi deixar a festa por um instante, pois a música alta começava
a incomodar meus ouvidos de criança... ao chegar a rua, notei John, sentado na
calçada a frente de minha casa, sozinho e de cabeça baixa... voltei pra festa
apenas para roubar mais uns doces, mas dessa vez eles eram para o John... comemos
os doces, e só não fiquei ali o resto da noite, porque mamãe sentiu minha falta
e me colocou pra dormir...
Aquela noite foi a mais especial da vida de Sofia,
ela dançara valsa com meu pai, recebeu muitos presente e felicitações, trocou
de roupa três vezes e cada aparição sua surpreendia os convidados com sua
beleza majestosa. Aquela noite foi a mais importante pra mim também, sentada na
calçada, John me ensinou onde eu deveria cavar para achar as melhores minhocas
pra nossa pescaria, me ensinou alguma coisa sobre a via Láctea e mostrou-me e
deu nome a algumas estrelas que enfeitavam o céu naquela noite... Quando
deitei-me na cama, lembro de ter agradecido ao “papai do céu” pela vida de
Sofia, minha irmã querida que me ensinou tudo sobre maquiagem e meninos... e
pela vida do meu amigo John que me ensinou a amarrar os sapatos e me explicou
que sapos não tem dentes e eu não precisava temê-los. No ano seguinte a vida
corria normalmente, Sofia com 16 anos, era castigada frequentemente por meu
pai, devido aos inúmeros pretendentes que ela tinha e a conta enorme de
telefone que chegava todo final de mês. Sofia era tão linda... John com 16
anos, era castigado diariamente pelas inúmeras espinhas que lhe cobriam o
rosto, e pelos incontáveis apelidos à ele atribuídos. John era tão lindo...
Era final de Junho de 1986, eu
estava eufórica... era o último dia do ano letivo, e eu teria Sofia só pra mim,
para ensinar-me novos passos de balett; eu teria John só pra mim, e enfim
construiríamos a nossa pipa cor de rosa... Como de costume, levantei cedo e
despedi-me de Sofia, e como sempre ela adentrou o ônibus amarelo com toda sua
realeza... John estava atrasado, aguardei alguns instantes na janela, e enfim
ele apareceu, acenou, mandou-me o beijo costumeiro e pude ler em seus lábios a
frase mais profunda já proferida pelo ser humano: “eu te amo”... fiz um coração
com as mãos em retribuição... Corri para meu quarto, puxei meu cobertor de
estimação, desci lentamente as escadas e deitei-me no sofá, mudando
constantemente de canal para achar meu desenho animado preferido, na ânsia que
a manhã acabasse logo e que as férias nos dessem boas vindas... eram 7:45 e eu
olhava desesperada para o relógio, como se meus olhares pudessem adianta-lo e
assim chegar mais rápido as 12h, a hora mais esperado do dia, quando minha
Sofia e meu John voltariam pra casa...
Peguei no sono... fui acordada com o
barulho do telefone, olhei rapidamente o relógio... ainda eram 10h, ajeitei-me
novamente no sofá, mas de lá fui brutalmente tirada pelo grito desesperado de
minha mãe... Algo de errado tinha acontecido... foi na escola... foi com
Sofia... Haviam invadido a escola, vários tiros foram ouvidos... Sofia estava
morta... John era o assassino! Foi duro ajudar minha mãe a escolher a roupa
para o funeral de Sofia... foi duro olhar para o outro lado da rua e ver a casa
de John vazia... A última vez que vi Sofia, foi quando saía de casa para a escola,
seus cabelos estavam soltos e ela usava o uniforme azul, a última vez que vi
John, foi no seu julgamento, seus cabelos estavam raspados, ele usava uniforme
laranja e pude ver, por debaixo das lentes grossas, que as lágrimas lavavam seu
rosto. Sofia agora repousa num verde gramado, num lugar calmo, com uma foto
linda esculpida na lápide de mármore... John foi condenado a morte, e aguarda
inquieto o dia em que uma injeção lhe adentrará as veias e o levará daquele
corredor escuro. Amarei Sofia eternamente por tudo o que ela fez por mim... e a
odiarei pelo resto de meus dias pelo que ela fez com John... Amarei John pelo
resto de meus dias por tudo o que ele fez por mim... e o odiarei eternamente
pelo que fez com Sofia...
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